quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Glossofobia Súbita

Vomitava palavras. Era assim que Alice lidava com a vida desde que aprendeu sua primeira vogal. Dois ouvidos e uma só boca; é assim com todo ser humano (diz-se que é para ouvir mais e falar menos); mas com ela parecia ser o contrário, parecia ser uma overdose de contrário, uma contradição biológica. Tão inúteis quanto seu apêndice eram seus ouvidos. Alice simplesmente falava. Simplesmente e tão somente. E não ouvia. Alice não suportava ouvir. Nem mesmo músicas Alice ouvia: abria em uma aba do seu navegador de internet uma página com a letra da canção e acompanhava sonoramente o instrumental sem deixar sequer que as dissonâncias do artista fossem escutadas.

Seus amigos já se haviam cansado de tentar manter um diálogo com Alice, sempre que ela estava presente nas rodas se estabelecia um verdadeiro monólogo. Para qualquer ser menos afortunado tal singularidade poderia consolidar-se num passaporte para a segregação social. Mas Alice não era qualquer menos afortunado, havia algo em Alice que não permitia que as pessoas a segregassem, uma aura qualquer, uma luz inexplicável que tornava até engraçado o modo como ela pegava ar para pronunciar palavras mais arrastadas e em seguida atropela-las com frases (por vezes incompreensíveis) sobre outro tema alheio ao inicial. O que nem Alice nem nenhum dos seus amigos sabiam era que o destino às vezes prega peças que vão de encontro até mesmo com a natureza das pessoas, logo a natureza, algo que nos é dado desde o abrir de olhos, o compreender das cores, a primeira vogal (no caso de Alice).

(O Primeiro Sintoma)
E lá estava Alice, não me recordo agora se era um sábado ou um domingo, lembro-me apenas do sol de meio dia brilhando no cume do céu, era aquele momento do dia em que as pessoas estão mais impacientes umas com as outras que de costume, em que o estômago libera, junto com a fome, os instintos animalescos e faz todo mundo parecer apressado. No meio de todo esse imbróglio, Alice conversava alegremente com o rapaz da sorveteria que, com os braços cruzados, batia os pés na esperança da moça se calar para que ele pudesse encerrar seu expediente matutino e almoçar em paz e, enquanto olhava pela 5ª vez para o relógio, um outro cliente entrava na sorveteria:

- Ainda funcionando? - Perguntou o rapaz sorridente de cabelos ondulados.
- Só por mais 5 minutos. - Respondeu o impaciente (já irritadiço) sorveteiro.
- Exatamente o tempo que eu preciso... - E se pôs à frente de Alice buscando o pote de sorvete de passas - ... com licença, moça. Desculpe interromper sua conversa que parecia tão agradável, mas a necessidade de me refrescar já está me deixando mal-educado.

E eis que se manifesta o primeiro sintoma. Veio rápido, quase imperceptível, por menos de um minuto Alice emudeceu. Faltaram-lhe as palavras do momento em que o rapaz entrara até aquele instante em que lhe dirigia um sorriso tão quente quanto aquele sol que iluminava seu rosto. Calou. E ninguém que conhecia Alice acreditaria instantaneamente nessa história, não quando a sua mania quase vital de vomitar as palavras saltava aos olhos até mesmo daquele recém conhecido sorveteiro.

Alice agora buscava algo que antes lhe saia tão naturalmente quanto o respirar, buscava algo para falar, para responder, balbuciou quase que inaudivelmente:

- A-A-Alice.
- Como? - Perguntou o rapaz desconsertado.
- Meu nome é Alice. - recuperando-se do lapso como num estampido.

(O Segundo Sintoma)
Frederico (o rapaz de sorriso largo e cabelo ondulado da sorveteria), passeava com sua falante namorada Alice por uma das movimentadas praças da cidade. Ele sorria e passava os dedos compridos nos cabelos enquanto esperava uma oportunidade entre as puxadas de ar da sua pequena para poder falar o que há tanto tempo vinha maquinando. Esperou cerca de 20 minutos pacientemente, mas nesse dia ela estava especialmente falante (especialmente radiante, como ele costumava pensar), e não deixara sequer uma brecha para o pronunciamento do rapaz. Foi então que, bem no meio  do interminável discurso acerca das pessoas que caminham mudas em um dia lindo como aquele,  resolveu interromper:

-Casa comigo. - proferiu num rompante, no tom de quase aconselhamento paterno que lhe era peculiar.

E emergiu assim o segundo sintoma. Um frio quente percorreu o corpo de Alice, que pela segunda vez em sua vida emudeceu. Buscou palavras com tanta força que saíram lágrimas dos seus olhos. Buscou todas as palavras que conhecia, de todos os livros que ainda leria, de todas as músicas que jamais escutara, de todos os sonhos que jamais tivera, e, por fim, desistiu. Não conseguiria falar, não ali, não diante daquele sorriso. Balançou a cabeça positivamente. Era o máximo que conseguiria fazer. Esse sintoma foi ainda mais forte, depois de quase 5 anos ele voltou, o silêncio, o léxico mudo, o dicionário de gestos que tanto incomodava Alice, ele estava de volta.

(O Desfalecimento)
Os metais sempre soam como prenúncio de alguma solenidade. Talvez a chegada de descendentes monarcas, quem sabe o velório de algum militar ou o casamento de pessoas comumente interessantes. Nesse caso estamos diante da terceira opção. O cenário é composto por flores naturais brancas, tias chorosas com seus lenços nos narizes já vermelhos pelo atrito e crianças ansiosas para o fim de todo aquele inexplicável ritual cansativo de senta e levanta. Todas as atenções estão voltadas para a noiva. O noivo está incomumente calmo (talvez por isso combinassem tanto, toda aquela história de opostos...), parado no altar, flor na lapela, sorriso no rosto e brilho no olhar, olhar esse que não saía da entrada da igreja. Então ela chegou. Vinha conversando no ouvido do seu pai, cuja fisionomia oscilava entre orgulho, tédio e impaciência. Nesse momento alguns tios mais salientes esboçaram sorrisos maliciosos no canto das bocas.

Ajoelhou-se. Sabia que teria que se calar. Oh! Céus, nunca ficara tanto tempo sem falar, nem em seu segundo sintoma. Quanto mais o tempo passava, alguns amigos se decepcionavam ao ver esgotado o seu palpite para o bolão informal promovido por Zequinha, amigo do noivo, onde quem acertasse, aproximadamente, a duração do silêncio da noiva no altar levaria o valor total arrecadado. E os minutos iam passando, e com eles Alice experimentara uma sensação até então jamais sentida: ela estava ouvindo. Ouvia as pessoas murmurando, as tias chorando, o padre com sua interminável ladainha, as crianças reclamando da demora e o bater de pés do noivo, demonstrando sutilmente que o nervoso também o atingira.  E eis que chega o tão esperado momento.

-Aceita Frederico como seu legítimo esposo? - questionou quase retoricamente o padre com semblante inexpressivo.

E então o desfalecimento. Já era de se esperar. Não é uma doença assintomática, ora! Vieram os sinais. Espaçadamente, sim, mas vieram. "As pessoas falam demais e não os percebem" - disse o doutor - "O quadro é grave" - concluiu. Não era um silêncio comum, era um silêncio desesperado, um silêncio dolorido, um silêncio aprisionador. Uma glossofobia súbita atacou Alice, que nada disse, que nada fez, que nada podia fazer. Glossofobia Súbita. E não haviam mais palavras na boca de Alice. E Alice, que sempre falara tanto sem nunca ser escutada como gostaria, experimentava pela primeira vez a sensação de não falar, e ver no semblante aflito das pessoas a expectativa de que uma, somente uma palavra, uma palavra que mudaria o rumo de toda a sua vida, fosse vomitada de sua boca como todas as outras de outrora. E Alice olhou ao redor e, pela primeira vez, se sentiu notada. 

- Maldita glossofobia - pensava o não mais calmo Frederico
- Bendita glossofobia - dizia o sorriso quase Da Vinciano estampado no rosto de Alice.

Bendita glossofobia...





terça-feira, 23 de agosto de 2011

Post Duplo


Me traz mais um livro, por favor.
Hoje quero passar a página de outras vidas,
adiar a leitura do meu epílogo
e me perder em histórias alheias.

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Guarda, menina.
Guarda em você tudo que é desnecessário.
Guarda bem guardado,
guarda e nunca mais procura
até que se perca nesse infinito que há dentro de ti.